O sistema bancário brasileiro é considerado um dos mais sólidos do mundo. Desde o início do Plano Real, houve um processo de consolidação muito forte e os poucos bancos que restaram conseguiram desenvolver parques tecnológicos robustos. Concentrando grande quantidade de ativos, esses bancos ficaram conhecidos pela resiliência e pelo poder de mudar o jogo. Porém, nos últimos anos, o mercado financeiro do País ganhou novos players: bancos digitais e fintechs.
Por acreditar que a entrada desses atores no mercado traria benefícios como rapidez e celeridade nas transações, diminuição da burocracia no acesso ao crédito, aumento da eficiência e concorrência no mercado de crédito, criação de condições para redução do custo de crédito, inovação e facilitação do acesso ao Sistema Financeiro Nacional, o Banco Central criou um arcabouço regulatório para favorecê-los. Em paralelo a isso, vemos o avanço da tecnologia e o advento de um consumidor mais digital. O resultado? bancos digitais ganhando cada vez mais clientes e soluções de fintechs sendo mais buscadas.
Octavio de Lazari Junior, presidente do Bradesco, conta como o mercado mudou nesse sentido. “Nós tínhamos cinco grandes bancos, e eu sabia exatamente quem eram os meus concorrentes, o que eles iriam fazer e sabia mais ou menos quais armas iriam usar. Isso acabou. Agora, todo dia quando acordo vejo que surgiu um concorrente novo. Concorrentes competentes, o que nos torna melhores.” Para o executivo, o novo cenário deixou uma visão mais clara: se preocupar mais com os clientes do que com os concorrentes e trabalhar para conquistá-los todos os dias.
Para Guilherme Horn, diretor de Estratégia e Inovação do banco BV, os novos players do mercado obrigaram os “bancões” a se movimentar mais rápido. “A evolução dos grandes bancos brasileiros nos últimos cinco anos, na agenda digital, é fantástica. E isso é decorrência da pressão das fintechs. A competitividade aumentou, mas de uma forma diferente. Em vez de tubarões brigando com seus pares, temos hoje centenas de pequenos peixes competindo e colaborando com os grandes. Isso trouxe uma outra dinâmica ao mercado, e os grandes bancos precisaram se adaptar”, afirma.

Fonte: Observatório Febraban — Setembro 2020
Mesmo antes da pandemia já existia um processo de digitalização das empresas e dos hábitos dos consumidores em curso, mas o novo coronavírus acelerou – e muito – isso. Nos primeiros seis meses de 2020, o e‑commerce brasileiro registrou um aumento de 47% no faturamento de vendas. De acordo com a Ebit|Nielsen, este foi o melhor resultado do comércio eletrônico nos últimos 20 anos. O uso de aplicativos, que oferecem desde entretenimento até compras e delivery, também teve um crescimento exponencial. Segundo estudo da AppsFlyer, empresa de análise de dados de aplicativos, o download de apps cresceu, em média, 25% em todo o País.
No setor financeiro, o movimento não é diferente. Segundo a pesquisa FEBRABAN de Tecnologia Bancária, em 2019, de cada dez transações bancárias, mais de seis aconteceram pelos meios digitais, principalmente via internet e mobile banking. De 2018 para 2019, o número de contas ativas com mobile banking cresceu 34%. Neste ano, apenas entre janeiro e abril, o número de transações realizadas nesse canal por pessoas físicas já registrou aumento de 22%.
O comportamento evidencia a intenção do consumidor de se tornar cada vez mais digital – e os bancos digitais têm sentido isso na pele. “Desde o início da pandemia, na média, temos mais de 100 mil aberturas de contas mensais de clientes procurando por uma solução totalmente digital e instantânea, na qual você cria uma conta com baixa burocracia, usando muita tecnologia. Isso significa um aumento de 30% na abertura de contas”, afirma Raul Moreira, diretor-executivo de TI, Produtos, Open Banking e Operações do Banco Original, primeiro banco a abrir uma conta totalmente digital no Brasil.
Daniel Mazini, Chief Product Officer da Neon, conta que não foi apenas o número de clientes que aumentou durante a pandemia. “Observamos também um aumento significativo no volume de dinheiro investido, no saldo em conta e nas transações, tanto de crédito quanto de débito. O movimento de digitalização acelerado nesse período acabou contribuindo para o crescimento de bancos e contas digitais”, afirma.

Para Maxnaun Gutierrez, head de produtos e pessoa física do C6 Bank, além do avanço digital, as vantagens oferecidas pelos novos players do mercado ajudam nesse crescimento. “É natural que em momentos de crise as pessoas passem a revisar seus gastos e fiquem mais atentas a produtos e serviços que representam um custo-benefício melhor. O C6 Bank, por exemplo, não cobra taxas pelos serviços financeiros básicos, como manutenção de conta, transferências e saque”, diz.
Claro que os grandes bancos estão atuando para acompanhar o movimento, seja com transformação digital, seja se apoiando na solidez para gerar percepção de valor para os consumidores. Outro dado da pesquisa FEBRABAN de Tecnologia Bancária mostra que os bancos aumentaram 48% os investimentos em tecnologia em 2019, puxados tanto por software quanto por hardware. O treinamento dos times também ganhou maior atenção no ano passado para responder à evolução do setor: foram investidos R$ 17,3 milhões em profissionais de TI e R$ 7,1 milhões na formação de times ágeis.
“Precisamos atender e entender o consumidor e as suas necessidades para fazer com que ele continue com a gente; é ele que importa e que tem o poder da escolha. Tão difícil quanto conquistar um cliente novo é manter os 70 milhões que temos. Se eu conquistar a principalidade do cliente para ele escolher qualquer uma das nossas empresas – seja a Alelo, seja o digio, o Next, o Bradesco Seguros, enfim, todas elas – para atender às necessidades que ele tem, eu vou ter uma tranquilidade muito maior para trabalhar. Esse é hoje o grande desafio”, afirma Octavio de Lazari Junior, presidente do Bradesco. Com projetos de redução de custos e digitalização em curso, recentemente, o banco anunciou o fechamento de 400 agências e conversão de outras 700 para unidades de negócios.
O trabalho de tecnologia feito no BV tem surtido efeito. É o que conta Guilherme Horn: “Em algumas áreas, o uso de canais digitais já passa de 90% das interações. Isso nos permite prestar um serviço com mais qualidade para o cliente, o que se reflete na sua satisfação. Além disso, vários processos que eram manuais, por limitações regulatórias, tornaram-se digitais, o que serviu para agilizar diversos serviços. Em resumo, posso dizer que o BV soube capturar as oportunidades para incrementar sua estratégia digital e que isso está se refletindo nos indicadores de satisfação dos nossos clientes”.
Um dos pontos principais da estratégia do Banco Central para diversificar os players e abrir caminho para a inclusão financeira é o PIX, que entra em operação no dia 16 de novembro. Utilizando alta tecnologia, o meio de pagamento instantâneo permite que recursos sejam transferidos entre quaisquer bancos, de banco para fintech, de fintech para instituição de pagamento, entre outros, a qualquer hora ou dia – não sendo necessário saber onde a outra pessoa tem conta; basta usar a lista de contatos do telefone com a Chave Pix.
João Manoel Pinho de Mello, diretor do Banco Central, afirmou em evento de apresentação do PIX que a nova tecnologia representa “um universo de possibilidades”. “Esperamos que a eletronização dos meios de pagamento e a conveniência do PIX tragam a redução do uso de papel-moeda, instrumento socialmente custoso que ainda é muito utilizado no Brasil. Outro benefício será a maior competição entre prestadores de serviços de pagamento. O nosso objetivo é prover um serviço público, uma plataforma, para que os agentes privados compitam e sejam provedores de serviços de alta qualidade com custos competitivos para os usuários finais.”
Os executivos dos bancos também se mostram bastante otimistas em relação ao novo meio de pagamento. “O PIX é extremamente positivo. Não é trivial o que está sendo implantado; coloca o Brasil entre os países com sistemas de pagamento mais modernos do mundo – já era avançado, agora dá um novo passo importante”, afirma Raul Moreira, diretor-executivo do Banco Original.
Para Priscila Salles, CMO do Banco Inter, a novidade vem para ajudar, e muito, o modelo dos bancos digitais. “A iniciativa chega para dar competitividade para os bancos e, principalmente, para beneficiar o consumidor. A tecnologia do PIX vai beneficiar não só as pessoas e as pequenas empresas que passam a contar com um serviço mais eficiente, seguro e barato, mas também as fintechs e os bancos digitais, que já lutam por serviços mais justos. Como o Inter nunca cobrou tarifas dos clientes, mas arca com os custos das transferências, o PIX também vai representar uma grande economia”, afirma.


Agora, todo dia quando acordo vejo que surgiu um concorrente novo. Concorrentes competentes, o que nos torna melhores. ”
Raul Moreira faz um alerta: “Na minha opinião, tudo o que a gente vem falando sobre o PIX é a ponta do iceberg. Vai surgir uma série de inovações por trás dessa estrutura que conectou todo o sistema de pagamentos no Brasil.” O executivo do banco Original ainda afirma que “o momento em que estamos vivendo do PIX e no qual vamos viver depois da consolidação do Open Banking serão determinantes para a nova dinâmica do sistema financeiro brasileiro”.
Com a primeira fase de implementação marcada para o dia 30 de novembro, o Open Banking permitirá o compartilhamento padronizado de dados, produtos e serviços, por instituições financeiras, de pagamento e outras autorizadas pelo Banco Central. Tudo isso de forma segura e ágil, por meio da abertura e integração de sistemas, com uso de interface específica para tal.
“O PIX e o Open Banking são dois adventos que devem impulsionar ainda mais a adesão do brasileiro ao sistema bancário. O pagamento pelo celular, em poucos segundos e a qualquer hora do dia, vai trazer mais dinâmica para o mercado e, portanto, mais clientes para os bancos em geral. O Open Banking, por outro lado, vai promover uma democratização dos dados do cliente entre os bancos – o que deve fomentar a concorrência, já que qualquer banco ou fintech poderá fazer ofertas mais competitivas para seus clientes. Atualmente, cerca de 83% do crédito está concentrado nos cinco maiores bancos do País. Essas iniciativas trazem mais competição ao mercado e favorecem os bancos digitais”, afirma Marcelo Scarpa, diretor de Crédito e Cobrança do digio.
A visão é corroborada por Maxnaun Gutierrez, do C6 Bank, que acrescenta: “Com o barateamento das transações financeiras proporcionado pelo PIX e o compartilhamento de dados dos clientes permitido pelo Open Banking, atividades que pequenas empresas antes não conseguiam oferecer agora se tornam possíveis. Abre-se o terreno para fintechs já estabelecidas e para novos entrantes. Ao dar ao usuário o poder de transferir o histórico de relacionamento que ele construiu com determinada instituição para uma fintech, a jovem empresa poderá conhecer bem o seu cliente de imediato. É um movimento que vai ser positivo, na verdade, para todo o mercado, porque ele vai forçar todos os atores do setor a melhorar seus serviços e a olhar para a experiência do cliente”.
Todo esse movimento está sendo realizado com o objetivo de aumentar a competitividade no mercado financeiro brasileiro e, com isso, promover a inclusão financeira. Mas, será que haverá uma transformação a ponto de vermos, de fato, uma mudança de patamar competitivo a partir da entrada das fintechs? Ou iremos assistir a uma relativa perda de valor dos bancos tradicionais, mas a manutenção do formato em que boa parte da concentração de ativos está com eles, tornando os novos players apenas complementares alternativos?
As fintechs apareceram e ganharam notoriedade no mercado ao desacoplar produtos e serviços que eram oferecidos pelos grandes bancos de forma mais proprietária, inovadora e com uma oferta tentadora para os clientes. Um exemplo são as plataformas de gestão financeira, como a ContaAzul e o Guiabolso, que surgiram oferecendo serviços para facilitar as contas e auxiliar no controle das despesas. Outro são as carteiras digitais como o PayPal, o PagSeguro e o Mercado Pago, que propiciaram o pagamento de contas de forma mais prática e segura (por meio do smartphone, tanto física quanto virtualmente), além de oferecer vantagens como o cashback. Já os bancos digitais, como C6, BS2 e Inter, ganharam espaço oferecendo serviços bancários e cartões sem a cobrança de taxa, além da desburocratização da abertura de contas.
Seguindo a toada e percebendo a importância dos novos formatos para o mercado, os bancos tradicionais lançaram as suas soluções. O Bradesco, por exemplo, possui o Next, um banco digital que oferece opções de investimentos e outros serviços, e o Bitz, uma solução de carteira digital que chegou recentemente ao mercado e já incorporou a fintech DinDin.
Para Guilherme Horn, do BV, esse é exatamente o caminho que os bancos tradicionais devem traçar. “Nas primeiras fases da ‘Revolução Fintech’, havia uma sensação de que toda fintech nascia para competir com os bancos. Isso foi desmistificado ao longo do tempo e hoje a maioria das novas fintechs tem a intenção de colaborar com os bancos, através de parcerias. O BV adotou um posicionamento de Bank as a Platform e publicou suas APIs em 2017, quando ainda quase não se falava de Open Banking no Brasil. Assim, começou a firmar parcerias, que hoje já são quase 200. Nosso propósito aqui é viabilizar novos produtos e modelos de negócios que tornem mais tranquila a vida financeira dos nossos clientes. Se a melhor solução para resolver um determinado problema vem de uma startup, por que não estabelecer uma parceria com ela e irmos juntos ao mercado? Não é mais possível grandes empresas competirem em todos os mercados como no passado”, afirma.

No fim, o que o consumidor deseja é praticidade, conveniência e uma ótima experiência. Quem entregar isso, sai na frente. “Temos que buscar prover todas as necessidades dos clientes em um único ambiente, com uma única experiência. Por isso, entendo que esses players que se especializaram em alguns tipos de produtos vão caminhar para uma tendência de se tornarem instituições completas também. Então, na minha visão, mais para a frente, vamos ver um processo de consolidação e os grandes players serão aqueles digitais, completos e abertos, que realmente tenham ecossistemas que apoiem as fintechs, ao mesmo tempo, estabeleçam uma relação direta com o consumidor”, diz Raul Moreira, do Original, banco digital que possui acordo com mais de 50 fintechs que utilizam suas APIs, além de ser controlador do PicPay, maior carteira digital do País na atualidade.
Gabriel Ferreira, head de Pessoa Física do Banco BS2, compartilha a visão de Raul e conta como o banco digital tem se posicionado. “É preciso agregar valor na oferta para fidelizar o cliente. No BS2, nascemos como banco 100% digital com uma conta-corrente e cartão sem tarifa. Atualmente, estamos nos transformando em um hub de serviços com uma plataforma completa de soluções financeiras para empresas e pessoas físicas. Um exemplo dessa oferta diferenciada é a conta internacional com saldo em dólar e sem tarifa de manutenção.”
Outros players, como o Inter e a Neon, seguem na mesma linha. “No novo momento de consolidação do Inter, estamos indo além dos serviços bancários, oferecendo uma verdadeira plataforma, na qual nossos clientes podem investir, contratar seguros, solicitar crédito e fazer compras online, tudo isso com benefícios que vão desde taxas mais atrativas ao cashback”, diz Priscila Salles. “Se a oferta de produtos não for completa, o cliente não fica. Neste ano, adquirimos a corretora Magliano para oferecer mais opções de investimento. Também lançamos a conta MEI Fácil, por meio da qual, com um clique, o empreendedor consegue pagar seu imposto mensal, sem a necessidade de emitir um boleto”, conta Daniel Mazini, da Neon.

Os bancos digitais se veem preparados para a “revolução bancária” que se desenha no Brasil, bem como as instituições mais tradicionais, que estão cada vez mais digitais. Mas, com quem eles competem?
Gabriel Ferreira, do BS2, conta que a previsão é que, este ano, mais de 40 milhões de pessoas devem abrir contas em bancos digitais. “Esses primeiros adopters são os nativos digitais, que estão mais abertos a ter uma experiência 100% digital. Eles já descobriram que não é preciso existir uma agência física do banco, pois é possível resolver tudo por chat ou telefone, além de poder contratar tudo de forma online com uma ótima experiência”, afirma.
Mas, além dos clientes que estão experimentando os bancos digitais, mesmo que muitos ainda mantenham suas contas nos bancos tradicionais, existe uma grande parcela da população brasileira que ainda é desbancarizada. Uma pesquisa do Instituto Locomotiva realizada no ano passado mostrou que cerca de 45 milhões de brasileiros não têm acesso a serviços financeiros. O grupo é responsável por movimentar R$ 817 bilhões na economia anualmente e pode ser atraído pelos novos players do mercado.
“Uma das maiores barreiras de entrada do brasileiro para o sistema bancário eram as taxas de abertura e manutenção de conta, transferências e cartões e a utilização majoritária de dinheiro em espécie. Os bancos digitais acabaram com essas taxas, e, com a pandemia, muitos brasileiros que só usavam dinheiro em espécie se viram obrigados a abrir contas digitais para receber o auxílio emergencial. Portanto, de alguns anos para cá, muitas barreiras foram derrubadas. Quanto mais praticidade e experiência positiva de atendimento os bancos digitais oferecerem, mais gente deve se bancarizar”, afirma Marcelo Scarpa, do digio.
Para Raul Moreira, quanto maior for o número de competidores digitais, mais fácil será promover a inclusão financeira, mas um dos grandes desafios ainda é a inclusão digital de boa parte da população, que precisa entender como utilizar os mecanismos. “Tem que haver uma ampla mobilização de estímulo à população, seja por parte dos bancos tradicionais, seja pelas fintechs ou pelos bancos digitais”, diz.
Mesmo assim, o diretor-executivo do banco Original vê um cenário promissor: “As peças do jogo já estão na mesa: a regulação, a tecnologia e o novo comportamento do consumidor. O grande engajamento nacional é exatamente promover a inclusão financeira, a inclusão digital e a substituição do papel-moeda para partirmos para um sistema financeiro mais aberto, moderno e competitivo. Com essas forças convergindo, e com todas as soluções que estão sendo desenvolvidas, acredito que, nos próximos cinco anos, vamos estar em outro patamar em termos de inclusão financeira e digital da população”.

Fonte: Distrito Fintech — Report 2020