
É hora de assumir a anormalidade
Imagino que a palavra “normal” nunca tenha sido tão utilizada como durante esta pandemia. Na busca por compreensão e na tentativa de retomar, mesmo que de forma limitada, a sensação de controle sobre os acontecimentos, vimos um novo tipo de normal ser anunciado: o “novo normal”. Mas, passado o frenesi inicial em relação a uma situação que está longe de terminar (se é que o conceito de “fim” também não precisará ser ressignificado), já sabemos que aquele novo não existe – e está longe de ser normal.
Então, parafraseando Carlos Drummond de Andrade, cabe a pergunta: E agora, José?
O poema “José”, publicado originalmente em 1942, ilustra o sentimento de solidão e abandono do indivíduo na cidade grande, a sua falta de esperança e a sensação de que está perdido na vida, sem saber que caminho tomar. O contexto da época, em plena Segunda Guerra Mundial e com o Brasil vivendo o Estado Novo de Getúlio Vargas, era de medo, repressão política, incerteza perante o futuro.
Lembrar do poema “José” nos ajuda a refletir sobre a primeira fase da pandemia do novo coronavírus. Estávamos todos completamente perdidos – corporações, marcas, líderes, consumidores –, mas ainda sem a humildade necessária para reconhecer tal condição. O termo “novo normal” surgiu como um atalho linguístico para a simplificação de algo colossalmente complexo.
Mas, o tempo é hábil em tratar soberba. Vários países já vivem a segunda onda e quero crer que amadurecemos nossa noção sobre complexidade. Com mais resiliência e resignação, começamos a adaptação nesse mundo anormal.
Já que normalidade é “um estado-padrão, normal, que é considerado correto, sob determinado ponto de vista, e gera uma norma aceita geralmente pela maioria”, o primeiro desafio para marcas e consumidores, no advento do anormal e antinormal, é o de questionar e rever as normas, os pontos de vista.
No antinormal, escala, agilidade e digitalização precisarão vir acompanhadas de um conhecimento mais profundo e genuíno de expectativas. É preciso evitar generalizações para repensar a experiência do consumidor de acordo com a expectativa de grupos e comunidades que, possivelmente, terão diferentes pontos de vista, necessidades e medos.
A tensão do indivíduo versus coletivo nunca foi tão palpável. É uma tensão entre controle e rendição. Para alguns consumidores, o medo foi demonstrado por meio do armazenamento. Para outros, o medo impulsiona o protecionismo, o isolamento e o comportamento de compra avesso ao risco, sustentando o local versus o global. Há também aqueles que ignoram a pandemia e usam o descaso como disfarce perante o medo.
Assim como para José, no poema de Drummond, há mais perguntas do que respostas. Porém, assumir a incerteza e a anormalidade abre o espaço necessário para questionamentos difíceis e vitais a partir daqui.
O consumo na anormalidade não cabe na antiga norma. Isso é certo.