O FIM DO
MONOPÓLIO SOCIAL
Em meio às tendências que já dominam as discussões de empresas no mundo todo, o Cannes Lions traz uma reflexão poderosa: é necessário combater todas as formas de monopólio social, sejam elas de gênero, sejam de cor, origem e – surpresa – do poder imenso das redes sociais e de gigantes da tecnologia
Por Jacques Meir e Roberto Meir | Enviados especiais a Cannes, na França
ovas tecnologias, Inteligência Artificial, criatividade e inovação sinestésica, mudanças no comportamento dos consumidores, Smart-Fy Experiences, Solve-itizing, a ascensão das plataformas de voz são algumas das tendências, algumas delas desconcertantes, que o Cannes Lions 2018 trouxe para provocar inquietação e ação entre os participantes.
Mais compacto, inteligente e com um conteúdo fortemente estratégico, o evento, que há 65 anos domina a paisagem da pequena, icônica e calorosa praia da Riviera Francesa, recuperou sua vitalidade e relevância após anos de certo gigantismo que desvirtuaram sua proposta. Se o evento nasceu como forma de reconhecer e valorizar a criatividade da linguagem e da produção publicitária, o Cannes Lions ganhou expressão e tessitura para se tornar um grande fórum de discussão da força da criatividade para os negócios. Hoje, o Festival é uma reunião de personalidades marcantes, profissionais criativos, executivos de negócios, cientistas, produtores de conteúdo, diretores de cinema, atores e profissionais com talentos e trabalhos inusitados, que testam os limites da expressão humana.
Essa combinação, que reflete a força da diversidade, torna o Cannes Lions uma caixa de ressonância de ideias que em maior ou menor grau ganham a agenda corporativa. Mas a grande lição que o evento trouxe, e que terá impactos profundos na produção do conteúdo – publicitário, jornalístico, de entretenimento e a serviço das empresas e marcas –, é a percepção já transformada em iniciativa – de reação a toda forma de monopólio social. Todas as formas de exercício de poder coercitivo ou manipulador estão sendo questionadas. E essa discussão não passa apenas pelas questões de gênero, presentes no discurso e lamentavelmente deficientes nas práticas do dia a dia, mas sobretudo na falta de regulação que ironicamente protege as chamadas “Big Tech” em sua trajetória de acumulação desmedida de poder e influência. Como diz Scott Galloway, enfánt terrible da academia norte-americana: “os homens mais poderosos do mundo não estão diante do botão nuclear, mas podem controlar os dados de bilhões de pessoas”. Galloway é autor de “The Four”, best-seller no qual justamente enumera os motivos que fazem da Amazon, do Google, da Apple e do Facebook um monumento à concentração de mercado na era digital, comandado por um rapaz de 30 anos, Mark Zuckerberg, que controla 2,1 bilhões de pessoas, mais do que qualquer democracia ou império na história da humanidade. Ele tem esse poder e não pode ser eleito ou removido de sua cadeira. É viável alguém ter tamanho poder? Essa perspectiva foi uma das muitas provocações e ideias apresentadas durante o Cannes Lions. A seguir, destrinchamos as mais poderosas, que certamente serão objeto de estudo e farão parte da elaboração das estratégias das empresas nos próximos anos.



“Durante milênios, os homens foram caçadores, provedores, heróis e bandidos, soldados e líderes. Mas, agora, esses papéis estão perdendo o sentido velozmente”
Faith Popcorn, futurista da BrainReserve
DIVERSIDADE SIM, ESTEREÓTIPOS NÃO
Diversas iniciativas conjuntas de empresas de produtos de consumo, grandes anunciantes, como P&G e Unilever, meios de comunicação e empresas de tecnologia foram lançadas ou utilizaram o Cannes Lions como plataforma para causas em favor da diversidade, da igualdade de gênero e pelo fim dos estereótipos. A P&G, com Marc Pritchard à frente e ativo como nunca durante o Festival, lançou a iniciativa Agents of Change, com Queen Latifah e Katie Couric, âncora da rede CBS, para que a comunicação de empresas, via publicidade ou conteúdo, e mesmo a produção de entretenimento sejam orientadas a eliminar todo viés que possa sugerir inferioridade das mulheres em relação aos homens. A igualdade de gênero é uma forma de compartilhar ideias que tornem o mundo um lugar melhor.
Ao mesmo tempo, a Unilever difundiu sua iniciativa “Unstereotype” para motivar a redução e quase que total eliminação do uso de estereótipos na produção global de conteúdo, no entretenimento e na publicidade. O debate ocorrido no espaço da Turner no Cannes Lions trouxe as opiniões firmes e consistentes de Storm Reid, atriz juvenil de 15 anos recém-completos, que se considera parte de uma geração (Z), “de esperança e mudança”, que acredita plenamente que a humanidade pode e deve viver sem estereótipos. Segundo Aline Santos, Vice-presidente de Marketing Global e Keith Weed, Chief Marketing Officer da Unilever, os anúncios com enfoque progressista, igualitário e transparente são 25% mais eficazes do que os anúncios baseados em estereótipos.
Mais do que os imperativos financeiros, é fato que as questões de gênero, a diversidade e a igualdade vieram para ficar e influenciar decisivamente as políticas e estratégias de marca e a contratação de talentos. A transformação social está na ordem das estratégias de relacionamento com clientes e o monopólio social representado pelo modelo nuclear familiar convencional é apenas um dentre os múltiplos extratos de agrupamento de afinidades, personalidades e atitudes existentes nas diferentes sociedades.
O OBITUÁRIO DA MASCULINIDADE
Faith Popcorn, a futurista da BrainReserve, continua provocativa. Durante o Cannes Lions ela falou sobre seus estudos mais recentes apregoando o fim da masculinidade como nós a conhecemos. “Durante milênios, os homens foram caçadores, provedores, heróis e bandidos, soldados e líderes. Mas, agora, esses papéis estão perdendo o sentido velozmente”, declara. A futurista também questiona “qual é o futuro do homem em uma era na qual parece que só as mulheres importam?”. Assim, a visão emergente da masculinidade, em nossas atuais Guerras de Gênero, ganhará espaço e qual é o papel que os homens desempenharão na cultura do amanhã? Ao que parece, o monopólio do discurso da virilidade e do poder masculino perde o sentido apesar de reações contrárias às ações de empoderamento feminino e igualdade de gênero. Soa fora de lugar, algo deslocado, a imposição de uma “autoridade masculina” baseada na história humana e na ideia de permanência expressa pelo sentimento de que “as coisas sempre foram assim”. É fato que “as coisas não são mais como costumavam ser”. E o monopólio do saber, do decidir, do escolher, de exercer opinião baseada em uma tradição de poder masculino está em declínio. Mais do que apostar na ascensão da androginia, como provoca Faith Popcorn, é seguro acreditar que o poder será compartilhado e dividido nas organizações, nas instituições, na política e na sociedade.
SMART-FY EXPERIENCES
Faith Popcorn, a futurista da BrainReserve, continua provocativa. Durante o Cannes Lions ela falou sobre seus estudos mais recentes apregoando o fim da masculinidade como nós a conhecemos. “Durante milênios, os homens foram caçadores, provedores, heróis e bandidos, soldados e líderes. Mas, agora, esses papéis estão perdendo o sentido velozmente”, declara. A futurista também questiona “qual é o futuro do homem em uma era na qual parece que só as mulheres importam?”. Assim, a visão emergente da masculinidade, em nossas atuais Guerras de Gênero, ganhará espaço e qual é o papel que os homens desempenharão na cultura do amanhã? Ao que parece, o monopólio do discurso da virilidade e do poder masculino perde o sentido apesar de reações contrárias às ações de empoderamento feminino e igualdade de gênero. Soa fora de lugar, algo deslocado, a imposição de uma “autoridade masculina” baseada na história humana e na ideia de permanência expressa pelo sentimento de que “as coisas sempre foram assim”. É fato que “as coisas não são mais como costumavam ser”. E o monopólio do saber, do decidir, do escolher, de exercer opinião baseada em uma tradição de poder masculino está em declínio. Mais do que apostar na ascensão da androginia, como provoca Faith Popcorn, é seguro acreditar que o poder será compartilhado e dividido nas organizações, nas instituições, na política e na sociedade.
RESOLUTIVIDADE EM CADEIA (SOLVE-ITIZING)
Todas as empresas de maneira geral estão no negócio de ganhar o tempo dos clientes. E a conquista desse tempo adicional para que clientes possam se dedicar a buscar experiências mais intensas (veja a tendência anterior) passa pela obrigação de as empresas se dedicarem a resolver problemas e zonas de fricção e atrito nos produtos e serviços que oferecem a clientes e consumidores. Carla Buzasi destacou essa tendência com um neologismo (Solve-itizing) ou “resolutividade em cadeia”. Segundo a executiva, as empresas devem se empenhar em oferecer soluções. Produtos e serviços que trazem soluções serão protagonistas e engajarão o consumidor. As empresas precisam entender quais problemas os consumidores querem ver resolvidos e se preparar para resolvê-los. Para isso, vale colocar as mãos na massa e voltar para a linha de frente, onde a ação acontece. Pensar na resolutividade em cadeia torna o negócio fluido e libera o tempo e a energia do cliente e da empresa para que juntos possam cocriar e gerar experiências e relacionamentos mais sólidos.

“O Facebook, uma das mais contestadas empresas da história, vive de mídia baseada na captura maliciosa dos dados dos usuários e nega-se peremptoriamente a assumir a sua responsabilidade na questão”
Scott Galloway
UMA GERAÇÃO EM 8”
Aqueles nascidos entre 1995 e 2015 formam o grupo conhecido como Geração Z ou Nativos Digitais ou, ainda, a tribo dos 8”. Seu poder de influência sobre o comportamento dos consumidores em geral ainda é objeto de estudos. Segundo Sarah Owen, editora sênior da WGSN, estes jovens, como filhos da crise financeira de 2008, são preocupados com a vida financeira e são mais frugais, menos agitados e seguros de que poderão provocar mudanças mais sensíveis que a geração anterior. A alcunha de “tribo dos 8 segundos” faz menção à dificuldade que estes jovens têm de manter atenção e foco nas coisas. É uma geração caracterizada pelo instantâneo, pelo movimento, pelas imagens e pelos códigos visuais (emojis e gifs), pela frugalidade e pelo convívio. Seus interesses de consumo centram-se em viagens e na alimentação, como forma de convívio e de contato com o diferente. Exercem e defendem agressivamente a diversidade. Os impactos deles no mercado consumidor serão sensíveis – por serem mais desapegados, imateriais e naturalmente transparentes – e também nas empresas, onde exigem transparência e comunicação aberta, com follow-ups frequentes, semanais ou diários, constantes e precisam sentir que as empresas estão interessadas em sua evolução
SEXO SEGURO, VALIDADO E AUTENTICADO
Se existe uma inovação com possibilidades ainda em aberto para vasta exploração é o blockchain. Pode-se afirmar que essa ideia tem o potencial de resgatar a aura de confiabilidade e segurança da internet. As aplicações do blockchain na criatividade, na indústria do entretenimento e na validação e autenticação das informações são extraordinárias. Uma apresentação da Accenture digital revelou algumas delas:
Democracia líquida – voto e escolha de representantes diretamente na internet, validados pelo blockchain;
Contratos inteligentes – fim das autenticações presenciais, dos carimbos e dos protocolos. Uma disrupção mais do que bem-vinda para países como o Brasil;
Cidades inteligentes – conexões entre dispositivos autenticadas e verificadas via blockchain;
Proteção para produtores de conteúdo – claro, emissão, produção, downloads, streaming, tudo autenticado pela tecnologia;
E até mesmo relações sexuais devidamente consentidas e validadas contratualmente, por meio do blockchain.

O Cannes Lions é o grito de independência contra o monopólio social, seja o secular, representado pelo poder masculino, seja o moderno, representado pelo controle de informação ostensivamente comandado por algoritmos nas redes sociais
ANÁLISE DO COTIDIANO
Contra as Fake News, uma boa dose de Inteligência Artificial. No Cannes Lions, uma previsão arriscada, mas instigante, projeta que todos os cidadãos comuns poderão acessar sistemas de IA para checar a veracidade de informações, as ofertas, as propostas e até mesmo para tomar decisões. A adoção dos assistentes virtuais comandados por voz permitirá às pessoas interagir e buscar informações na rede fazendo do machine learning um aliado na compreensão e no constante refinamento dos resultados. Essa análise do cotidiano vai permitir às IAs descartar qualquer informação acessória, priorizando apenas que responda a uma consulta ou embase uma decisão mais correta. Um bom exemplo é na recuperação de débitos, em que a IA analisa o comportamento dos inadimplentes e elimina abordagens ineficientes de acordo com os diferentes perfis de clientes.
TIREM AS BIG TECHS DA PRAIA
Scott Galloway, professor da Universidade de Nova York, foi ao Cannes Lions para afirmar: “O Facebook, uma das mais contestadas empresas da história, vive de mídia baseada na captura maliciosa dos dados dos usuários e nega-se peremptoriamente a assumir a sua responsabilidade na questão”. A missão a que Scott humildemente se propôs é “varrer Facebook e Google da praia de Cannes, se possível já em 2019”. Difícil imaginar isso tendo em vista o enorme apelo que a gigante de Mountain View – Google – tem com as pessoas. Seu misto de lounge, espaço, ambiente, bar e balada em Cannes viveu lotado, sempre acessível e aberto a todos os tipos de crachás, inclusivo e amigável. O Facebook, ao contrário, limitava o acesso e permitiu que a imprensa visitasse seu espaço somente no primeiro dia do Festival, em contraditório à natureza supostamente inclusiva de seu negócio. Afinal, falamos de uma rede… social, mas incrivelmente ciosa de sua própria privacidade enquanto se vale de contorcionismos verbais para justificar o uso dos dados de seus usuários. Mark Zuckerberg e sua entourage apresentam uma legião de seguidores maior do que a população da China ou que todos os praticantes do catolicismo. Enquanto um líder, por pior que seja, costuma exercer a sua autoridade por alguns anos, mesmo em países autocráticos como China e Rússia, e Mark poderá permanecer no posto de ‘ditador das redes sociais’ pelos próximos 30 anos!!! E sem contestação. Afinal, o monopólio do Facebook abrange mais de 94% das chamadas redes sociais e continua crescendo… Ninguém na história da humanidade teve ou provavelmente terá mais poder do que o fundador do Facebook.
O grande movimento no sentido contrário ao poder avassalador das redes sociais e das Big Techs – Google, Amazon, Facebook e Apple – é denominado “brand as publishers”, ou “marcas como editoras/provedoras de conteúdo”. Está claro que a melhor defesa contra Fake News e ataques à reputação das marcas é trabalhar diretamente o conteúdo em plataformas independentes, personalizadas ou isentas.
O Cannes Lions é o grito de independência contra o monopólio social, seja o secular, representado pelo poder masculino, seja o moderno, representado pelo controle de informação ostensivamente comandado por algoritmos nas redes sociais. Isso significa que os disruptores agora têm de enfrentar a disrupção. Gatilhos para alertar pessoas sobre o consumo excessivo de redes sociais já fazem parte das novas atualizações de sistemas operacionais da Apple e do Android (Google). Estas gigantes enxergam a necessidade de fazer concessões antes que seus negócios sejam fortemente regulados, movimento já iniciado com a adoção do GDPR na União Europeia.
Em meio aos escombros da batalha contra os monopólios sociais, fica a pergunta essencial: como se constrói e se mantém confiança em um mundo que irá se transformar ainda mais radicalmente daqui para a frente?

