O preço da confiança é a eterna vigilância?
O contexto atual mutilou um elemento básico de qualquer bom funcionamento do mercado: a confiança. Para restaurar essa confiança, será necessário abrir mão de outro elemento fundamental: a privacidade
“Fique em casa” foi a recomendação em tom solene, quase autoritária, que nos fizeram quando a pandemia chegou ao Brasil. Em poucos dias, um clima de pânico tomou a população, e palavras como “quarentena”, “distanciamento social”, “isolamento”, “máscaras” e “home office” ocuparam as buscas do Google. Em abril, o Brasil e boa parte do mundo ficaram praticamente paralisados. As economias e os mercados registraram números aterradores, com PIBs negativos de dois dígitos no segundo trimestre.
O Brasil, que vinha ensaiando um crescimento mais convincente do que o 1% ao ano registrado entre 2017 e 2019, após a calamitosa recessão provocada por uma condução econômica alienada de lógica e razão a partir de 2010, sentiu o tranco. Até hoje, ainda não dimensionamos exatamente o tamanho do prejuízo causado pelo combate à COVID-19 no País. Pior, ficamos devendo no combate à pandemia do ponto de vista da saúde, da educação e da economia em geral, salvo exceções de praxe (em crises, sempre há quem consiga vender seus lenços) e o fôlego proporcionado pelo bem-vindo auxílio emergencial.
O legado desse momento tresloucado ainda será sentido por muito e muito tempo. Porque um dos elementos mais essenciais para o bom funcionamento de qualquer economia é a confiança. E ela foi inapelavelmente mutilada durante os últimos meses. Afinal, como manter confiança quando milhares de pequenas empresas tiveram de fechar suas portas sem perspectiva de reabertura, ou quando milhares e milhares de pessoas foram demitidas por falta de caixa ou, ainda, quando o comércio em lojas físicas representava risco real de contágio pelo novo coronavírus?
Até o momento, com números estratosféricos de infectados e de óbitos (e contando) aliados às incertezas quanto à chegada de uma vacina efetiva, é difícil pensar em restaurar a confiança do consumidor de modo efetivo. Para agravar o quadro, ainda não existe garantia de segurança absoluta para retomar, de forma constante, atividades comezinhas como ir ao shopping, treinar em academia e comer em restaurantes – para não falar em tomar um simples ônibus ou metrô.
Junte esses ingredientes e temos um prato indigesto: insegurança, escapismo, negação, incerteza. Para que a retomada após as políticas-jabutica de Flexibilização por Cansaço de Quarentena e de Imunização de Rebanho por Incompetência dê resultados consistentes, resgatar a confiança é essencial. Mas por onde começar?
Um caminho é buscar referências. Os países que melhor enfrentaram a pandemia até agora promoveram uma combinação de alto volume de testagem com rastreio de infectados para isolar possíveis novos doentes e assim conter a propagação do vírus. Para isso, nações como Alemanha, Itália, Suíça e Espanha criaram aplicativos como o Radar Covid (espanhol), com o objetivo de mostrar se uma pessoa entrou em contato com um doente de COVID-19. Assim, com um app, você pode saber se está infectado ou ser avisado se entrou em contato com alguém portador do vírus. Parece invasivo para você? E o que acha de ver sua temperatura sendo medida a cada loja, shopping ou edifício em que você entra? E se você tiver de portar uma carteirinha de “imunizado” (por vacina ou por ter contraído e superado a doença) para embarcar em um avião? Pois bem, um dos legados da COVID-19 será justamente a rediscussão dos limites da privacidade.
Pense nas políticas antifumo vigentes na maioria dos países do globo: um fumante não pode exercer seu vício em qualquer lugar, precisa acessar fumódromos, o que o torna facilmente identificável. Colocar fumódromos é uma invasão de privacidade? Então ser apontado como portador de Covid-19 por meio de um app (uma espécie de “covidódromo” virtual) é um atentado à privacidade?
A questão aqui é que tudo o que acontece em meio digital gera dados. E dados, por mais que se garanta a anonimização, sempre podem ser rastreados. E, em tempos de pandemia, classificar, reconhecer e identificar os doentes pode representar a diferença entre reduzir chances de contágio e, eventualmente, de sofrer com os desdobramentos de um vírus potencialmente desconhecido, que já manifestou dezenas de sintomas e sequelas diferentes – sem contar sua taxa de letalidade, que alcança números absolutos elevados pela absurda velocidade de transmissão.
Mas, ora, se podemos admitir esse rastreamento por conta da covid-19 e já nos acostumamos a ser rastreados por cookies, mídia programática e links patrocinados na internet, se permitimos quase instantaneamente que serviços de streaming e de mapas orientem nossas decisões sobre que filme ver, que música ouvir e que caminho tomar, isso quer dizer que a confiança que buscamos restaurar está, de alguma forma, comprometida com alguma forma de vigilância digital. Mecanismos de validação de identidade, biométricos ou numéricos (tokens), atestados de saúde, de imunização, de perfil, de afinidade com assuntos ou grupos redesenham o conceito de privacidade fazendo daquele que optar pelo anonimato uma espécie de pária ou eremita digital.
A economia da confiança, que tem bancos, hospitais, operadoras de saúde, teles, serviços digitais, e‑commerces e marketplaces na linha de frente, vai cobrar um preço na forma de um sistema de vigilância que será justificado como instrumento de segurança pessoal. Ou seja, rastrear o que fazemos, ainda que com a nossa concordância, será a base de nossa convivência com o ambiente digital e com a restauração de uma certa normalidade em nossos hábitos cotidianos.
E aí fica o dilema: a Covid-19 trouxe uma sequela – a redução de nossa liberdade – ou uma vacina – à segurança de podermos confiar uns nos outros? Em uma sociedade digital, nada se perde, nada se esconde, tudo se transforma em dado. Em outras palavras: de agora em diante, confie desconfiando.