Pelo direito de discordar
Desde pequeno, cultivo o hábito de ler de forma quase insaciável. Sou leitor voraz das principais publicações internacionais e algumas nacionais. E, a cada dia que passa, fico mais perplexo com a qualidade da informação e a pasteurização do conteúdo gerado. Tudo tão previsível que é possível escrever a notícia e a manchete especulativa, até mesmo antes do fato gerador. Tudo é repetido e retroalimentado numa batida diária e monótona de um exército de militantes devidamente abastecidos com a inutilidade e a desinformação devidamente instigada pelo ópio das redes sociais.
No âmbito nacional, a insignificância das informações e sua representatividade no hábito de reflexão e pensar são um desaforo ao mínimo de quociente intelectual das pessoas. Se assim o é, qual é a utilidade do conteúdo produzido? Essa pauta surrada de ataques e desaforos diários em altos e sonoros decibéis constrói algo? Cadê o debate frutífero, as ideias, a criatividade, o positivo? Não se tem o que e como comparar. Há exatos 40 anos – mais do que uma geração, somos um retumbante fracasso. Não geramos riquezas, nem empreendedores de classe mundial, nem exemplos de reputação. Somos gigantes e ricos por natureza, mas pobres nas essências social, econômica e intelectual. Então, por que insistir neste festival de reportagens diárias e em editoriais tão ofensivos, destinados somente ao ego de quem ainda acha que detém o poder da informação?
Política partidária, meio ambiente, diversidade, empatia, propósito, sustentabilidade, consumo consciente – todos assuntos altamente relevantes e fundamentais para um futuro melhor. Mas todos eles usados e desperdiçados de forma tão maçante e cansativa, sem clareza, que vão se diluir na fileira de clichês e oportunistas de ocasião.
Venho de um tempo em que a informação para ganhar as manchetes dos grandes jornais, que por sua vez pautavam os canais de televisão e só assim alcançavam a todos, tinha de passar por um filtro profissional. Ainda que muitas vezes isso ficasse só na teoria, as capas e headlines que se tornavam assunto nas mesas dentro e fora das casas tinham de ter fonte, passar por confirmação, checagem, conferência ou, no mínimo, um esforço de inteligência para sustentar posições, indefensáveis que fossem. E muitas vezes eram.
Pesavam, sim, os interesses dos chefões da grande mídia. Conteúdos sempre foram manipulados e as fake news já faziam bons estragos antes de receberem esse nome. Não é sobre nostalgia; vivi de perto os males dos monopólios de comunicação. Mas havia divergência, discordância, contradição. Os veículos de comunicação hoje parecem defensores de um manual de vigilância ativista engenhosamente direcionados (e capitalizados) pelas Big Techs, essas pseudodemocráticas empresas inventadas por garotos de tênis na garagem de casa dos pais. Elas tornaram ações inclusivas, do ponto de vista social, um pastiche do marketing que estrangula. A ser seguido da forma como é colocado sob o risco de ser considerado inimigo da causa. Acabou a liberdade de expressão. Ninguém tem o direito sagrado e solene de pensar, retrucar ou discordar. A verdade é ditada pelo algoritmo.
A ideia de que as nossas novas gerações estão comprando – e pagando com a perda de seu livre-arbítrio – é a mais excludente e sectária possível: ou você empunha a minha bandeira ou você está contra a causa e, portanto, contra mim. E, por isso, eu te cancelo. Se você não assina embaixo (leia-se, se você não dá um like) no movimento da semana, você passa a pertencer à escória da humanidade; torna-se da noite para o dia um racista, fascista, machista ou outro “ista” do qual você sempre discordou por princípio.
As verdadeiras nações que estão nas mãos das grandes redes – por necessidades básicas humanas como a sensação de pertencimento, a socialização, o desejo de se relacionar – têm como faróis os influenciadores profissionais, os novos heróis. Os novos modelos de vida têm uma eleição diferente de outrora: não são seus feitos, gestos ou contribuições para a humanidade ou para os vizinhos de bairro que os fazem faróis. Seu posto é conquistado e mantido pelo número de seguidores de suas “páginas”, alimentadas quase sempre por polêmicas vazias e uma boa equipe de estrategistas de marketing.
Oportunistas como esses chegam a fóruns de discussões políticas, econômicas, sociais e até educacionais, figurando entre as listas inatingíveis e podendo passar a representar um país. Mas esse malefício, empobrecedor, é pequeno perto do outro poder que entregamos às Big Techs. Hoje, uma rede social censura e tira o post de uma profissional de saúde que ousa denunciar um malfeito em seu país. Um especialista que corrobore a tese de um inimigo do cardume é cancelado. As redes sociais são questionadas por estimularem as chamadas fake news, mas, exatamente, o que são e como se definem fake news? Seriam fakes tudo aquilo que não queremos ouvir e queremos cancelar? Qual autoridade essas big techs têm para se intitular como tribunais para censurar ou não comentários, ideias ou pontos de vista? Dentro dessas empresas que se autoproclamaram filtros da verdade quem são os especialistas que decidem cancelar ideias ou opiniões que vão contra a onda? Quais são os critérios? Em que leis são apoiadas as razões de acatarmos as regras e entregarmos o nosso direito de escolha para plataformas que só existem porque as abastecemos diariamente? Afinal, uma democracia não se fundamenta e se alicerça pela correta e coerente discussão e pelo debate de ideias que ajudem a edificar as nações, unir os povos e lutar pelo bem comum?
Que tal cancelar o mal maior, aquele que instiga essa crescente e incontrolável polarização?
