A SAGA DA MOEDA DIGITAL
MONEY20/20 APONTA PARA UMA REVOLUÇÃO NO USO DO DINHEIRO. O FIM DO PAPEL-MOEDA, O PODER INOVADOR DAS FINTECHS, A DISRUPÇÃO DO BLOCKCHAIN E A MULTIPLICAÇÃO DAS CRIPTOMOEDAS VÃO GERAR VALOR INCALCULÁVEL. MAS ESSE VALOR SERÁ COMPARTILHADO?
POR JACQUES MEIR
Uma vez ao ano, Las Vegas torna-se a capital mundial do dinheiro. Não por conta da presença dos cassinos, que freneticamente movimentam grandes apostas 24 horas por dia, mas sim por ser a cidade-sede do Money20/20, um evento que se dedica a entender como a revolução digital muda nossa relação com as transações financeiras.
Isso quer dizer que o Money20/20 é um evento destinado aos executivos do mercado financeiro? Longe disso. Ele atrai, logicamente, profissionais e lideranças de bancos e cartões de crédito, mas também empreendedores de startups, fintechs, varejo, e‑commerce e tecnologia. O propósito é movimentar uma imensa cadeia de valor que está em reinvenção acelerada por obra da transformação digital. O evento já tem edições na China, na Europa e nos EUA e reúne mais de 11.500 participantes, dos quais mais de 500 palestrantes e 2.600 executivos C‑Level. Uma massa ávida por fazer negócios e enxergar tendências que gerem negócios e competitividade para mais de 3.500 empresas de mais de cem países.
Toda essa força não seria nada demais sem um conteúdo de valor. Estruturado em verticais distribuídas por salas específicas, o Money20/20 sempre traz algumas ideias específicas, que retratam os movimentos resultantes da combinação de tecnologia, inovação, mudanças no comportamento do cliente, meios de pagamento, serviços financeiros, a atuação e a estratégia dos bancos, empresas insurgentes e meios de pagamento. Este ano, três assuntos puxaram as discussões e os debates do evento: o blockchain, a Inteligência Artificial e a experiência do cliente.



NADA DE NOVO, FORA A INOVAÇÃO
Sob a superfície aparentemente conhecida, a abordagem do Money20/20 foi na verdade uma onda de choque sobre empresas e negócios incumbentes. O tema central “A revolução do dinheiro” foi até modesto diante das forças inovadoras em atuação. As fintechs foram saudadas como uma tendência renovadora e necessária para desconstruir os bancos e os seus protocolos mundo afora, democratizando o acesso de mais consumidores aos serviços financeiros mais simples – contas, crédito, investimentos. Saem os gigantescos supermercados financeiros e entram em cena as plataformas de interação com clientes, que trocam a burocracia, a seletividade e os perfis pasteurizados e entram a agilidade, a facilidade de contratação quase universal e as personas definidas por atitudes e comportamentos.
Esse formato de atuação foi largamente debatido e amplificado no Money20/20. Em 2017, mais de 23% da população norte-americana era definida como “desbancarizada” ou “sub-bancarizada”. Esse número indica que o acesso a serviços financeiros tradicionais ou inexiste ou é limitado, incluindo procedimentos simples como manter contas-correntes ou de poupança. Nos EUA, essa situação representa mais de US$ 380 bilhões potencialmente fora do mercado financeiro. No Brasil, o número é similar em reais e há dados que mostram quase R$ 200 bilhões em circulação nos mercados pouco ou nada formais. Falamos aqui de grandes massas de circulação de dinheiro vivo com todo o inconveniente que isso traz, à parte permitir que pessoas podem buscar alguma condição de vida mais digna na informalidade. Mas até que ponto mesmo esse modelo de capital de giro entre pessoas e pequenos negócios não pode também adotar modelos digitais, com segurança, confiabilidade e geração de valor?
Falamos aqui de incentivo à inovação, seja por meio da atuação dos órgãos reguladores, seja por meio de investimentos continuados em novos modelos de negócio, que “fatiam” o negócio original dos bancos, criando serviços especializados mais acessíveis e intensamente digitais.
O ENDIVIDAMENTO NO DIVÃ
“É necessário reimaginar os serviços financeiros para realmente trazer benefícios consistentes para os clientes. Muitos consumidores americanos ainda estão machucados pelas experiências negativas com suas hipotecas. E como até mesmo essa forma de financiamento, tão popular nos EUA, pode se tornar ainda mais amigável?”. Essa foi a provocação de Regis Hadiaris, diretor-executivo da Rocket Mortgage. Porque há um mindset novo se formando, que contesta vigorosamente a forma pela qual os serviços financeiros são oferecidos aos clientes. Por trás de promessas de dinheiro fácil e crédito farto, há um ciclo de endividamento, perda de renda e mercado de trabalho volátil, com grande giro de empregados. A grande equação é buscar criar classes e grandes massas de clientes aptas a consumir com a pressão da automação de um lado (que vai eliminar funções e empregos em larga escala) e a falta de propósito no trabalho de outro. E, diante desse cenário de insegurança e insatisfação, soa anacrônico pensar em modelos bancários convencionais. Senão vejamos gente como Antony Jenkins, da 10x Banking. Outrora, um superexecutivo do mercado financeiro tradicional, Jenkins resolveu arriscar carreira e futuro em uma startup devotada a ajudar os bancos a se tornarem dez vezes melhores para os seus clientes continuamente.
A discussão é tão pertinente em um mercado gigantesco como o norte-americano quanto é no Brasil. Nos EUA, um terço dos cidadãos americanos não tem um dólar sequer separado como economia. No Brasil, a taxa de poupança é igualmente baixa, o que torna especialmente delicado qualquer revés econômico, que normalmente deixa milhões de famílias desamparadas. “Esta é a grande virtude das fintechs. Elas criam negócios voltados para a realidade das empresas. Somente esse posicionamento já representa uma ruptura sensível no modelo de negócio da indústria”, comenta Antony.
O endividamento é um problema de economia comportamental e essa abordagem hoje orienta o surgimento de fintechs capazes de fazer essa leitura. Temos bons exemplos no Brasil como Bom Pra Crédito, Geru, Lendico, Nubank, entre outras. Se os bancos não são eficientes para impedir que milhões de seus clientes atuais não se endividem, e também não conseguem criar acesso para outros clientes não bancarizados, é fácil perceber porque o nosso País é considerado um mercado promissor para fintechs, ao lado do mercado comum europeu. A regulação ajuda, como vimos na recente autorização concedida pelo Banco Central para investimento estrangeiro em nossas startups financeiras.
Anand Sanwal, CEO da plataforma CB Insights: varejistas e bancos tradicionais podem ser atropelados por varejistas e fintechs
Jenkins, da 10x Banking (segundo, da esq. para dir.): startup foi criada para a ajudar os bancos a se tornarem dez vezes melhores para os seus clientes
AGORA, O BLOCKCHAIN
Convidamos o leitor a perceber o contexto mais amplo: maior acesso a serviços financeiros, digitalização do dinheiro com eliminação progressiva do papel-moeda e o combate à lavagem de dinheiro e à sonegação levam as transações financeiras para outro nível de exigência, capaz de assegurar a origem, o destino, a validade e a segurança de cada movimentação de recursos. Esta é a base do furor causado pela tecnologia blockchain. Todas as premissas dos novos negócios financeiros e do novo desenho do uso do dinheiro passam pela adoção intensiva desta inovação. Só há um problema: ele custa e ainda é necessário saber como a tecnologia torna-se viável no dia a dia.
Experiências em curso existem, às centenas. Impossível não se entusiasmar com o esquema de financiamento coletivo do músico e filantropo americano Akon que criou uma criptomoeda chamada Akoin, para incentivar pequenos negócios em comunidades carentes de seu continente natal. O segredo é assegurar a transferência de recursos por meio do blockchain, permitindo realizar pequenos empréstimos contratados via celular para que empreendedores possam criar negócios de impacto social. O Money20/20 promoveu e incentivou muitas discussões em torno das criptomoedas e foi quase impossível sair do evento sem acreditar que o futuro do dinheiro passa por padrões monetários digitais, descentralizados e aceitos pelos bancos centrais. Alguns dias depois, não causou surpresa a criação de uma criptomoeda pela Suécia. Isso porque o blockchain funciona como um token permanente de legitimação de transações financeiras praticamente inquebrável. Luxemburgo já criou um “blockchain act” para regular seu uso e a Comunidade Europeia trabalha no desenvolvimento de um sistema de transferência financeira transnacional entre pessoas – semelhante à nossa TED – que funcione 24x7x365, com protocolo blockchain. É por fatos como esse que o blockchain é considerado a inovação com maior potencial para reinventar segmentos de mercados inteiros desde o advento da internet.

RAPPER AMERICANO AKON LANÇOU SUA PRÓPRIA CRIPTOMOEDA, A ‘AKOIN’, PARA GERAR NEGÓCIOS DE IMPACTO SOCIAL NO SENEGAL
INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL: O GÊNIO SAIU DA LÂMPADA
Se a visão de Inteligências Artificiais desempenhando as mais diversas funções repetitivas com índice de erro perto de zero e produtividade exponencial assusta a mão de obra e a escala global, ela também incentiva projeções menos apocalípticas para não dizer francamente otimistas. Dois gigantes do mercado financeiro global têm iniciativas incrivelmente bem-sucedidas baseadas em IA. O JPMorgan Chase desenvolveu um sistema que combina as competências humana e da máquina para fornecer melhores conselhos e dicas de investimento para seus clientes. IAs permitem identificar padrões, processar operações e tarefas velozmente. E, por extensão, tornam o processo de recomendação automático, fluido e praticamente inato. As capacidades das IAs permitem entender e interpretar a linguagem e prover respostas qualificadas. O Goldman Sachs, maior banco de investimentos do mundo, uma lenda – para o bem e para o mal – de Wall Street (e que incentivou a criação de bancos influentes como BTG no Brasil – sua sigla seria fruto da expressão Better Than Goldman), criou a plataforma Marcus, de orientação financeira para pequenos clientes. Em menos de dois anos de operação, Marcus já tem mais de 2 milhões de clientes que pagam assinaturas mensais para ter acesso às informações que possam orientar sua vida financeira.
As IAs estão avançando muito mais rapidamente no plano dos Assistentes Pessoais comandados por voz. A evolução acelerada de dispositivos e sistemas como Alexa, da Amazon, Google Talk, do Google e Siri, da Apple mexem com a imaginação de jornalistas, visionários e especialistas em tecnologia. Casas conectadas, carros autônomos, compras predeterminadas e o ganho de tempo para os consumidores que podem organizar sua vida somente demandando tarefas para seus assistentes apontam para rupturas sérias nos padrões de consumo. O fato é que uma IA na verdade é um sistema que “aprende” incorporando a informação que se permite circular por nós. Pouco a pouco, esses dispositivos vão assimilando padrões que atendem às expectativas dos usuários nas mais variadas tarefas – playlists musicais, séries, programação esportiva, compras recorrentes, verificação de saldos e extratos – com a segurança da biometria de voz.
Nesse sentido, assistentes virtuais funcionam como uma plataforma predeterminada de pagamento, combinando sempre a melhor alternativa – pagamentos em débito, crédito, carteira digital – no orçamento estipulado, para os produtos e as mercas estipulados. Ora, esses mesmos dispositivos podem ser a porta de entrada para um mercado financeiro à parte, que gravite à margem dos grandes bancos. Alexa não é um brinquedinho. É o acesso para um mundo de serviços financeiros convenientes criados pela Amazon, tais como: Amazon Pay, sistema de pagamento, Amazon Prime Visa, cartão de crédito, Amazon Lending, empréstimos, Amazon Cash, para saques e até recargas com Amazon Rechargeable. Tudo isso por comando de voz. Se alguém está olhando apenas para o comércio conversacional, no qual clientes interagem com dispositivos, melhor pensar no horizonte de um novo ecossistema financeiro se formando, no qual varejistas e bancos tradicionais podem ser atropelados por varejistas e fintechs insurgentes, que se colocam no mercado “gradualmente e então o conquistam repentinamente”, como apontou Anand Sanwal, CEO da plataforma CB Insights.
A força incontrolável das IAs é atestada pelos mais de US$ 30 bilhões já investidos este ano no desenvolvimento de sistemas e também de machine learning.
A EXPERIÊNCIA DO CLIENTE
Combinando IA, meios de pagamento e fintechs, recria-se a experiência do consumidor. Os dados gerados e captados pelas empresas podem orientar novas estratégias, mas, sobretudo, são a essência de uma nova maneira de se fazer negócios. A automação prescinde da elaboração humana para assegurar a lealdade do cliente. Basta que o faça pensar que a empresa está pensando nele. É o suficiente. Sem racionalizar, o cliente está pronto para aderir a recomendações, impressões de outros clientes, resenhas e “escolhas” apontadas pelos ambientes virtuais, mesmo nas lojas físicas. O ápice da experiência do cliente é fazer com que ele não se inquiete, não questione, apenas realize transações com um clique, um comando ou nem isso.
“A revolução do dinheiro” proposta pelo Money20/20 2018 é antes uma tentativa de compreender o cenário geral de pesquisas e inovações em série que se acumulam e são adotadas por empresas com ânsia de disrupção. Significa talvez a queda de Roma, após décadas ou pelo menos dois séculos de predominância de uma estrutura de compra, venda, contratação e transação, com melhorias incrementais que não alteravam as regras do jogo.
O jogo está mudando e as regras ainda estão sendo escritas. É a saga da moeda digital, um capítulo dramático e cheio de suspense da vida digital.
INSIGHTS DA CB INSIGHTS
A partir do conteúdo oferecido pelos principais eventos de inovação do mundo, o Centro de Inteligência Padrão customiza um painel de insights. Confira as linhas gerais do Money20/20*
MUDANÇA DE PADRÃO MONETÁRIO — O dinheiro físico está na berlinda, talvez com os dias contados, mesmo em mercados emergentes e regiões de pobreza endêmica. A moeda digital é a forma mais sofisticada, acessível e justa de distribuir renda, em modelos de criptomoeda, peer-to-peer, O2P (Ong 2 Peer), crowdfunding, crowdsourcing. Os insumos para a aposentadoria completa do dinheiro físico são internet, celular e blockchain.
BLOCKCHAIN — Será o validador de toda e qualquer transação, a tecnologia capaz de garantir a origem, o destino, o conteúdo, a informação e o valor de cada transação. E entenda-se por transação qualquer – qualquer – transmissão de informação de um ponto a outro.
DESINTERMEDIAÇÃO DO SISTEMA FINANCEIRO – Aposta de alto risco, pelo alinhamento umbilical entre empresas – bancos – incumbentes com agentes reguladores. Mas as fintechs estão avançando rapidamente sobre o mercado como um todo, mostrando que é possível aumentar a competição, colocando o cliente no centro e oferecendo melhores serviços e experiências. Agentes reguladores têm olhado com simpatia para essa onda. Sempre é bom lembrar: “gradualmente e então repentinamente”.
HOME-COMMERCE — Uma casa conectada, com dispositivos conectados entre si e comandados por um assistente pessoal, será o novo shopping center. Imagine que cada cômodo ou área de uma residência – mesmo as mais compactas – poderá ser fonte de ideias e decisões de consumo. O banheiro “saberá” quando pedir a pasta de dentes, quando a escova de dentes precisa ser trocada, o shampoo para cuidar de cabelos recém-alisados. A cozinha “saberá” quando pedir o chocolate das crianças ou a melhor época para comprar os morangos – o micro-ondas “saberá” a temperatura ideal do seu prato, bem como a combinação calórica ideal para a sua dieta, e assim por diante.
A EXPERIÊNCIA DO CLIENTE — Suprema é fazer o cliente nem perceber que precisa dela. Sistemas de IA poderão “aprender” tanto sobre seus clientes que os pontos de atrito serão eliminados. Sem essa inquietação, o cliente está pronto para consumir sem perceber que está. O modelo Netflix estará em toda parte.
Tudo isso poderá acontecer em um país como o Brasil? Para os céticos vale lembrar que acabamos de eleger um presidente usando a força digital como plataforma de campanha. Convém estar preparado.
*Para mais informações sobre insights dos eventos acesse
www.centrodeinteligenciapadrao.com.br
Para a cobertura detalhada do conteúdo do evento, acesses os portais www.consumidormoderno.com.br e www.portalnovarejo.com.br – #cmnomoney2020 e #nvnomoney2020.