UM REBELDE VIRAL
Este é o pós-consumidor. Ele representa o fim da visão fragmentada do cliente, baseada em gerações, perfis, demografias. O CONAREC 2018 revelou as bases desse consumidor que tem o DNA da inquietação
POR JACQUES MEIR
Durante décadas, desde que o marketing começou a ser entendido e fundamentado como disciplina, as empresas dedicaram-se a buscar formas de compreender o consumidor. As empresas, de maneira mais ou menos sofisticada, procuraram combinar conhecimentos de outras disciplinas, como a psicologia e a antropologia, adotar ferramentas acessórias, como a publicidade, e modelar estratégias de comunicação de massa; depois segmentações progressivas e mais intensas sempre tiveram como objetivo tornar produtos e serviços mais competitivos, bem-sucedidos para consumidores imaginados.
onhecer o consumidor, identificá-lo, assimilar seus hábitos e suas atitudes e tentar prever seus comportamentos e suas motivações tornou-se elemento fundamental das estratégias corporativas. Várias cadeias de valor foram criadas a partir dessa premissa: empresas que conheçam melhor seus consumidores teriam mais condições de triunfar competitivamente sobre suas competidoras. Publicidade, comunicação dirigida, relações públicas, relacionamento com clientes, tecnologias, consultorias são indústrias que se desenvolveram a partir dessa necessidade.
No entanto, o advento da era da digitalização, combinação da ascensão da internet e da mobilidade, mudou essa equação. Às empresas não bastava apenas criar produtos e serviços e buscar aderência, ou despertar “atenção, interesse, desejo e ação” (a célebre fórmula AIDA) dos consumidores. Corporações perderam progressivamente o poder de iniciar a conversa e buscar a transação como fim. O consumidor ganhou poder de voz, identidade, perfil nas redes sociais e, mais importante, percebeu que poderia se ligar em múltiplas redes de opiniões, comunicações, ideias, fotos e fatos para comentar, criticar, sugerir, externar raiva, alegria e admiração.
Quanto mais esse efeito rede se impôs, maior foi a propensão das empresas a adotar formatos de segmentação que pudessem ir ao encontro das expectativas de consumidores mais exigentes. Todo mundo passou a olhar e a cultivar árvores e se esqueceram de olhar a floresta. E o “parlamento das árvores” se reuniu, de forma errática, inconsciente, mas avassaladora, na pessoa do pós-consumidor.
Este poderia ser apenas mais um jargão com vocação sonora e potencial para ganhar a mídia em larga escala, mas não. O pós-consumidor representa a criação e consolidação de uma nova mentalidade que orienta e caracteriza consumidores no mundo todo, de diferentes gerações, perfis, gêneros e renda. São um agrupamento gigantesco e, ao mesmo tempo, representam um imenso “exército de Davis”, pelo seu apego à personalização extrema e vontade de serem reconhecidos como indivíduos distintos. Essa defesa incondicional da própria individualidade obriga as empresas a adotarem o “customering”, no lugar do marketing, no brilhante insight apresentado por Joe Pine na abertura do CONAREC. O pós-consumidor é intolerante com a burocracia, esteja ela presente em uma loja, no telefone, no banco ou no serviço público. É impaciente ao extremo; não admite perda de tempo e enxerga o mundo real como extensão da velocidade de resposta digital, exigindo agilidade, rapidez, caminhos diretos, atalhos. É insatisfeito com regras estabelecidas, e questiona sempre “por que tal coisa precisa ser assim?” Acredito que o leitor já se sentiu assim e já manifestou sua inquietude em situações cotidianas. Em larga medida, o pós-consumidor está ordenando que as empresas revejam seus processos, desconstruam sua burocracia, eliminem barreiras, sejam mais transparentes, mais ciosas de sua informação, mais protagonistas e corajosas diante dos problemas das pessoas comuns. Ele está dizendo que todas as empresas estão no negócio de resolver problemas e de ganhar tempo para seus clientes, estejam elas vendendo aviões, passagens aéreas, biscoitos na praia, pneus, geladeiras, planos de saúde ou louças para banheiro.
Nesse sentido, o pós-consumidor é um rebelde com uma causa: tornar as economias de mercado, as sociedades e até a política – atenção, candidatos a presidente! Falamos de economias de mercado, sociedades e sistemas políticos – mais eficientes, fluidas, inteligentes e justas.
Para anabolizar essa rebeldia, o pós-consumidor tem uma arma imprevisível: o efeito rede. Não se pode adivinhar quando ou em que situação um comentário de um cliente poderá sair do anonimato e angariar zilhões de curtidas, compartilhamentos e comentários. Mas é justamente o apelo de usar as redes que motiva clientes intolerantes, impacientes e insatisfeitos a falarem sobre suas virtudes e seus problemas, frustrações e anseios nessa floresta caótica da comunicação digital. Pós-consumidores semeiam discórdia, mas também oferecem frutos às empresas que se proponham a respeitar o ecossistema de redes interconectadas, sistemas complexos nos quais todos têm igual importância e pedem reconhecimento, alinhando-se a discussões que refletem momentos específicos, mesmo que pertencendo a “segmentos contraditórios”. É perfeitamente possível ver um empedernido socialista pertencer ao mesmo grupo de fanáticos consumidores de uma marca caracterizada por consumidores ultraliberais. Os extremos se tocam em pontos dispersos.
Por isso, as discussões do CONAREC 2018 foram tão ricas e tão intensas como o leitor pôde ver nas páginas anteriores. Porque o pós-consumidor está além dos rótulos, dos estereótipos e das tentativas de “classificação” em caixinhas perfeitamente definidas. Ele se alinha ao grande oceano digital, em que o esforço se concentra em estruturar dados para daí sim extrair conhecimento e inteligência.
É importante entender o pós-consumidor como um rebelde viral que quer fugir da mesmice, das frases feitas e das respostas protocolares. Talvez ele reaja bem à interação com Inteligências Artificiais de grande capacidade cognitiva. No fundo, o pós-consumidor significa uma ruptura com o existente, e, talvez, um sinal de que ainda temos muito o que fazer como humanos. Aos robôs delegaremos o esforço. A nós, e às organizações que criamos e recriaremos, caberá tão somente aplacar nossas ansiedades e inquietações imortais.